“Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.”
Fernando Pessoa – A Mensagem
A dor não é simpática. Não gostamos dela e dela fugimos. Seja física, psicológica, emocional ou um mix match (mistura) de tudo isto. O ser humano esmerou-se nisso, nessa fuga da dor. E fê-lo bem. É uma questão de sobrevivência. Não falamos da morte. Escondemos os sentimentos. E quando dói algo que queremos resolver rapidamente, tomamos um analgésico. Pain killer em inglês: matar a dor. E matando dor a dor, vamos prosseguindo, tornando-nos dormentes com distrações, drogas, álcool, trabalho a mais. Varremos para debaixo do tapete aquelas que são as dores invisíveis aos olhos dos outros (e por isso tantas vezes tão mal-aceites): a tristeza, o aperto no peito, o medo do futuro, o medo de sermos abandonados, a raiva de nos terem enganado, a injustiça do insucesso.
No fundo afundamos em nós as nossas histórias ou recontamos sem o pano de fundo, aquilo que efetivamente aconteceu ou o que realmente sentimos. Mas há um momento (há sempre um momento, não é?) em que a vida dá um pontapé certeiro nesse tapete, ou na coleção de tapeçarias que tão bem vamos guardando. E puf. Tanto que fica pelo ar. Tanto pó e monstrinhos a pairar que deixamos de ver bem. Perdemos perspetiva, tudo à nossa volta perde a forma. Não sabemos que passo dar, para onde nos dirigir, a quem pedir ajuda. Como valentes guerreiros, tentamos continuar, e muitos continuam (e por vezes ainda bem), na funcionalidade. Às apalpadelas, vamos encontrando caminhos, óculos distratores da poeirada e talvez ainda com a ajuda de um antialérgico para tapar os espirros que pó provoca. Bem-vindos às crises.
Um parêntese: ainda bem que continuamos, ainda bem que por vezes usamos distrações, ainda bem que tentamos fazer o nosso melhor com aquilo que temos. E às vezes não podemos fazer melhor num dado momento que não seja varrer essa dor.
Mas… O que fazer? A dor existe. É palpável, é sentida. Seja física ou psicológica. E por vezes a melhor saída é ter de a sentir e passar por ela. Não é alimentá-la ou cair na vitimização ou até mesmo na desresponsabilização. É assumi-la como nossa, aceitar que está ali e que temos de a cuidar. Sem a varrer. É como passar o Cabo Bojador. Se queremos ver o que está além da dor, temos de passar por ela. Não significa alimentar o sofrimento, sublinho novamente. É contactar com essa tristeza, raiva, medo. E podemos fazê-lo com segurança. Não temos (nem aconselho) de o fazer com uma leve canoa. Podemos construir um navio robusto, forte que nos ajude a dobrar o Cabo. Este navio são as nossas pessoas, ferramentas, terapia, medicação… Mas somos nós que temos de estar ao leme, gerir as coordenadas, verificar as cordas.
Se custa? Sim. Por isso é mais fácil varrer. É difícil construir o navio e é difícil passar pelo Cabo. E, não vos querendo assustar, há mais Cabos. E às vezes temos de dobrar uns atrás dos outros. Mas vamos ganhando experiência no caminho, já temos o navio construído e por vezes os Cabos vão parecendo mais pequenos e fáceis de ultrapassar. As crises já não são tão prolongadas e o “ir abaixo” já não é tão lá em baixo. Parece um final idílico, feliz. Gosto de ver como esperançoso e não como um final. É possível trabalhar, melhorar, transformar a dor. Mas é duro. É um trabalho contínuo.
E muitas vezes vamo-nos deparar com mais um Cabo e perguntar: outra vez? Estamos cansados, ainda não reparámos sequer o convés da última aventura que foi mesmo agora. Assim pode ser a vida. Respira, confia. E navega. E não te esqueças que tens uma âncora. E por vezes podes parar um pouco. Nem que seja um dia. E no dia seguinte, enches o peito de ar e a toda a brida! Com cautela e coragem no coração.
Imagem: Jasper van der Meij em Unsplash